22 de abril de 2024
Numa academia da zona leste de São Paulo, fora do horário de funcionamento, o instrutor de musculação Liam*, 44, espeta a seringa em um frasco, puxa um líquido oleoso e aplica a agulha em sua pele. A substância, conhecida como Durateston, trata-se de um medicamento com derivados de testosterona, um esteroide anabolizante. Liam usa produtos do tipo desde os 17 anos.
Antes de chegar às mãos do instrutor, o anabolizante viajou por cerca de 1.300 km. Foi adquirido supostamente da empresa farmacêutica Landerlan, com sede em Lambaré, no Paraguai. “Uso anabolizantes regularmente desde 2001, só compro deles por meio de um contato”, revela Liam à reportagem.
Em abril de 2023, o CFM (Conselho Federal de Medicina) proibiu que médicos prescrevam esteroides para fins estéticos e esportivos. A venda desses remédios é proibida sem receita médica no Brasil.
A suposta empresa paraguaia alega, na apresentação dos produtos em um site com domínio brasileiro, que são apenas para consulta. Além disso, um informativo alerta que os fármacos da galeria de compras não têm registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas é possível encomendar qualquer um deles na própria página.
Ao lado de cada um dos produtos há um botão, que redireciona o cliente a um vendedor via WhatsApp. No teste da reportagem, o representante, que tinha o DDD de São Paulo, informou não ser preciso receita médica e enviou rapidamente uma lista com dezenas de hormônios, alguns deles veterinários de uso restrito.
Entretanto, diversas reclamações no Reclame Aqui acusam a suposta empresa paraguaia de não entregar o medicamento e alegam que o site com domínio brasileiro, trata-se na verdade de um site falso e não da marca original.
O site com domínio paraguaio não apresenta o valor dos produtos, como o brasileiro e fornece telefones e e-mails para contato sem direcionar para aplicativos de mensagens ou vendedores, mas oferece a mesma gama de medicamentos, incluindo os de uso veterinário.
Outros sites com o nome da marca e domínio brasileiro oferecem os produtos e seguem a mesma metodologia: enviar os interessados a uma conversa privada via WhatsApp.
Aumento das vendas legais e apreensões ilegais
De acordo com a Anvisa, houve um aumento de 45% na venda dos três principais anabolizantes industrializados (testosterona, cipionato de testosterona e undecilato de testosterona).
O levantamento usa a comparação entre os anos de 2021 e 2019, de acordo com apuração e reportagem da Folha de S.Paulo. O compilado desconsiderou o ano de 2020, por conta da pandemia de covid-19, em que houve fechamento de academias e diminuição no agendamento de consultas médicas.
Em 2019, o BPFRON (Batalhão de Polícia de Fronteira), responsável por monitorar a fronteira do Brasil com o Paraguai, em Foz do Iguaçu, fez uma apreensão recorde, com 126.082 unidades de medicamentos. O batalhão também acompanhou uma queda nas apreensões em 2020, com 8.339 unidades, e com relativo aumento nos anos consecutivos. Em 2023, foram 47.999, de acordo com dados enviados para VivaBem.
“Entre os medicamentos, estão remédios para disfunção sexual e abortivos, mas a grande maioria são anabolizantes”, diz Erioberto Joeckel, tenente do Comando do Pelotão de Operações com Cães e chefe da comunicação social do BPFRON.
“Alguns transportadores podem estar agindo por conta própria, transportando drogas ou outros produtos ilícitos para ganho pessoal, enquanto outros podem estar ligados a organizações criminosas mais amplas. Organizações criminosas muitas vezes utilizam várias pessoas para transportar e distribuir substâncias ilícitas como parte de suas operações”, diz o tenente.
Crime e anabolizante paraguaio sem registro
Quem compra e vende hormônios não registrados na Anvisa comete crime, que pode ser tipificado como contrabando de medicamentos, de acordo com o advogado Fabrício Sicchierolli Posocco, da Posocco Advogados.
“Quem vende anabolizantes não reconhecidos na Anvisa comete o crime do artigo 273, parágrafo 1 do código penal. A depender da quantidade, pode representar contrabando/descaminho. Não tendo a droga anabolizante registro na Anvisa, gera o crime de importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária, com pena de um a três anos [de prisão]”, explica Posocco.
Posocco afirma que muitos defendem que a venda desses medicamentos sem receita se configura apenas como uma infração de ordem administrativa e que a punição não seria grave a ponto de ensejar uma prisão. Mas a situação pode ser passível de crime grave, podendo ser considerada crime hediondo, caso exista uma manipulação dessas substâncias e adulteração das mesmas. Neste caso, a punição é de até 15 anos de prisão.
“Pode até mesmo ser tráfico de substâncias ilícitas/entorpecentes, equiparando-se ao tráfico de drogas, cuja pena também pode chegar até 15 anos”, diz Posocco.
Para Marcelo Carita Correra, mestre em direito penal pela PUC-SP, apesar da declaração online conter alertas sobre a inexistência de registro no Brasil e do caráter meramente informativo dos valores e dados médicos expostos, não afasta a configuração do crime, já que, conforme apurado na reportagem, o site que se apresenta como uma marca paraguaia realiza a venda direta no país.
Leia a reportagem completa, escrita por Giacomo Vicenzo, no UOL.